FONTE: Ultimato
BY: Paul Freston
Este
artigo não é mais uma denúncia indignada (muito menos, uma defesa
apaixonada) do deputado federal evangélico Marco Feliciano, que desde
março de 2013 preside a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da
Câmara dos Deputados. É uma tentativa de recuar um pouco, de conseguir
uma certa altura, para entender melhor de onde vem um fenômeno como
Feliciano e o que está e não está em jogo no caso dele.
Perspectiva histórica
Perspectiva histórica
Nos
últimos cinquenta anos no Brasil, o catolicismo tem sido mais associado
à defesa dos direitos humanos do que o protestantismo. Mas,
historicamente, o contrário foi verdadeiro. O catolicismo somente
incorporou uma preocupação com os direitos humanos a partir do Concílio
Vaticano II, nos anos 60. E, mesmo assim, mais em alguns países -- como o
Brasil -- do que em outros -- como a Argentina. O chefe da Igreja
Católica argentina, durante o brutal regime militar que durou de 1976 a
1983, disse que os supostos desaparecidos estavam todos no exílio
dourado em Paris. Porém, o papa João Paulo II, em uma de suas visitas à
América Latina, afirmou que “à mensagem do evangelho pertencem todos os
problemas dos direitos humanos”.
O protestantismo, por outro lado,
constitui a confissão religiosa mais profundamente ligada à evolução de
conceitos de direitos humanos, culminando no forte envolvimento
protestante na carta fundante das Nações Unidas em 1945 e na Declaração
Universal dos Direitos Humanos em 1948. Daí a ironia da situação atual
no Brasil.
Perspectiva global
O que está em jogo (ou deveria estar em jogo) na controvérsia em torno de Marco Feliciano? Não é o conceito de Estado laico!
Perspectiva global
O que está em jogo (ou deveria estar em jogo) na controvérsia em torno de Marco Feliciano? Não é o conceito de Estado laico!
A
“teoria da secularização” (quanto mais moderno, mais secular) tem sido
fortemente questionada desde os anos 80. Nas últimas décadas, muitos
estudiosos abandonaram (pelo menos parcialmente) a teoria da
secularização e adotaram a ideia de “modernidades múltiplas” (há várias
maneiras de ser moderno, inclusive maneiras religiosas). A religião
continua (ou volta a estar) em evidência na vida política de várias
regiões do mundo.
Na realidade, a relação da religião com a vida
pública ao redor do mundo é extremamente variada, assim como a relação
entre religião e Estado. Há uma sofisticação crescente nas análises da
relação entre religião e Estado. Várias tipologias foram propostas.
Utilizo aqui uma do cientista político turco Ahmet Kuru, que propõe um
“continuum”:
1. Estados religiosos (Ex.: Irã).
2. Estados com uma religião estabelecida (Ex.: Inglaterra) ou várias religiões estabelecidas ou oficializadas (Ex.: Indonésia).
3. Estados com a “laicidade passiva” ou “plural”, ou seja, a neutralidade estatal e permissão para a visibilidade pública da religião (Ex.: Estados Unidos).
4. Estados com a “laicidade agressiva” ou “de combate”, ou seja, que exclui a religião da esfera pública (Ex.: França, Turquia).
5. Estados antirreligiosos (Ex.: Coreia do Norte).
Uma coisa que vemos dessa tipologia é que a frase “o Estado é laico” significa pouco, pois as últimas três opções (muito diferentes entre si) poderiam caber nessa frase. Frequentemente, há um uso ideológico desse lema para deslegitimar uma proposta adversária.
1. Estados religiosos (Ex.: Irã).
2. Estados com uma religião estabelecida (Ex.: Inglaterra) ou várias religiões estabelecidas ou oficializadas (Ex.: Indonésia).
3. Estados com a “laicidade passiva” ou “plural”, ou seja, a neutralidade estatal e permissão para a visibilidade pública da religião (Ex.: Estados Unidos).
4. Estados com a “laicidade agressiva” ou “de combate”, ou seja, que exclui a religião da esfera pública (Ex.: França, Turquia).
5. Estados antirreligiosos (Ex.: Coreia do Norte).
Uma coisa que vemos dessa tipologia é que a frase “o Estado é laico” significa pouco, pois as últimas três opções (muito diferentes entre si) poderiam caber nessa frase. Frequentemente, há um uso ideológico desse lema para deslegitimar uma proposta adversária.
Não há modelo ideal
de relações entre religião e Estado. O que há é sempre uma evolução a
partir de realidades locais. A força de tradições locais não desaparece
com mudanças meramente legais. Não há, por exemplo, resposta definitiva à
pergunta se a França tem razão em proibir o uso do véu em determinados
ambientes. O véu pode significar coisas diferentes em países diferentes.
Finalmente,
os estudiosos têm chamado a atenção para a diferença entre as relações
entre Igreja e Estado e as relações entre religião e política. Há muitos
países que não têm igreja estabelecida, mas têm uma vida política muito
imbuída pelos impulsos e valores religiosos. Não há nada de antimoderno
nem, muito menos, de antidemocrático nisso.
Perspectiva contemporânea
Perspectiva contemporânea
Em
quê o Brasil é singular, em termos globais? Não é em ter uma forte
presença da religião na política, pois isso acontece em muitos países.
Não é no crescimento evangélico, nem no envolvimento evangélico na
política. Porém, o Brasil é singular, sim, no corporativismo eleitoral
evangélico bem-sucedido. Ou seja, a prática de várias denominações
apresentarem candidatos “oficiais” em eleições e em convencer boa parte
dos seus membros a votarem nesses candidatos, elegendo-os deputados
federais, deputados estaduais e vereadores.
A que se deve essa singularidade brasileira? O que torna possível esse modelo corporativista? A junção de vários fatores, principalmente o sistema eleitoral (de representação proporcional com listas abertas), o sistema partidário (fragmentado, volátil e pouco ideológico) e a organização da mídia no Brasil, que possibilita uma presença maciça das igrejas através da compra de horários e da aquisição de canais.
É o corporativismo
das candidaturas “oficiais” que explica sobretudo o hiato em análises
acadêmicas, entre uma avaliação bastante “positiva” da presença
evangélica no âmbito micro (na sociedade civil, sobretudo nas esferas
mais desvalidas da sociedade) e uma avaliação “negativa” no âmbito macro
(na política formal). O modelo de candidatos “oficiais” está ligado, de
forma desproporcional, aos casos de envolvimento de políticos
evangélicos em escândalos políticos.
Até onde vai o corporativismo?
Ele tem sucesso relativamente grande em eleições proporcionais, elegendo
parlamentares em todos os níveis. Porém, é menos eficaz em eleições
majoritárias, porque: a) não consegue eleger seus próprios candidatos,
já que a lógica de uma campanha majoritária é outra; e b) às vezes,
“promete” votos a um candidato de fora da igreja (a prefeito,
governador, presidente), mas nunca consegue uma taxa tão alta de
obediência dos seus fiéis.
Nesse contexto, é pertinente olhar alguns
dados sobre as atitudes políticas dos fiéis pentecostais comuns. Em
2006, o Pew Forum fez um levantamento sobre pentecostais de dez países,
inclusive do Brasil. Os pentecostais brasileiros afirmam, assim como a
população brasileira em geral, o valor dos processos democráticos.
Quando perguntados se, para resolver os problemas do país, seria melhor
ter um governo mais participativo ou um líder forte, os pentecostais
preferem -- mais do que a população brasileira geral -- um governo mais
participativo. Somente 25% dos pentecostais queriam a solução do
“governante forte”, comparado com 29% da população geral.
Quanto à
importância de haver liberdade religiosa, inclusive para as outras
religiões, os pentecostais (94% favoráveis) acompanham a tendência geral
da população (95%). Quando perguntados se deveria haver separação entre
Igreja e Estado, ou se o país deveria ser oficialmente um “país
cristão”, os pentecostais são mais a favor da separação (50%) do que da
ideia de um “país cristão” (32%).
O crescimento pentecostal estaria
favorecendo a ideologia do governo mínimo e do neoliberalismo? Os dados
do Pew sugerem que não. Perguntados se o governo deve garantir alimento e
abrigo a todos os cidadãos, os pentecostais (95%) são ainda mais
afirmativos que os brasileiros em geral (93%).
Semelhantemente com a
ideia de que os pentecostais estariam criando ao redor do mundo um
ambiente favorável aos interesses imperiais norte-americanos:
perguntados em 2006 se estavam a favor da “guerra ao terror liderada
pelos Estados Unidos”, os pentecostais brasileiros respondiam menos
positivamente do que a população brasileira em geral.
O levantamento
Pew fez duas perguntas sobre o aborto. Primeiro, sobre a dimensão moral:
se o aborto seria, em alguma circunstância, moralmente justificável --
91% dos pentecostais brasileiros disseram que não. Porém, sobre a
dimensão legislativa, a resposta foi diferente: somente 56% disseram que
o governo deveria interferir na decisão de uma mulher abortar. Ou seja,
91% consideram o aborto moralmente inaceitável, mas somente 56% acham
que a lei deve proibir.
Perspectiva futura
Perspectiva futura
Por
fim, é pertinente considerar a possível longevidade do estilo
corporativista pentecostal de fazer política. Começou em 1986, com a
eleição para a Constituinte, e tudo indica que ainda tem muito fôlego.
Porém, não vai durar para sempre. Por uma série de razões, a fase de
crescimento rápido das igrejas evangélicas não deve durar além de mais
duas ou três décadas. Depois, a porcentagem evangélica da população
deverá estabilizar-se. Com isso, quanto às características sociológicas
das igrejas evangélicas, tudo mudará. Haverá uma porcentagem cada vez
maior de membros natos e de conversos mais antigos, e com isso haverá
mais demandas por ensinamento e por outros tipos de líder eclesiástico.
Haverá menos triunfalismo e maiores expectativas no campo da atuação
social, e a interação com as outras religiões mudará radicalmente. E
outras maneiras de relacionar-se com a política passarão a predominar.
Portanto,
o tipo de política evangélica que atualmente predomina não é parte
essencial da fé evangélica e nem do seu segmento pentecostal. Um dia
será superado, talvez graças a mudanças sociológicas mais do que a um
processo consciente de aprendizado. Porém, é bom lembrar as limitações
desse modelo corporativista e da fragilidade de suas bases internas. No
entanto, por alguns anos, o corporativismo marcará fortemente a presença
evangélica na vida pública, e fenômenos como Feliciano terão o seu
lugar ao sol, para a alegria de alguns evangélicos e o desespero de
muitos.
• Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá. Autor de, entre outros, Nem Monge, Nem Executivo e Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não
• Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá. Autor de, entre outros, Nem Monge, Nem Executivo e Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não
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