Via: ULTIMATO
Saiu nos jornais o resultado de uma pesquisa do IBGE com dados interessantes sobre a realidade evangélica no Brasil. O dado que mais nos chamou a atenção é o que diz respeito à categoria evangélica que mais cresce: o “evangélico sem igreja”. A maior parte desse grupo não é de evangélicos “nominais” (os que se autodenominam evangélicos, mas não frequentam uma igreja); antes, é composta pelos que se consideram evangélicos, mas não se identificam com denominação alguma. Longe de ser “nominal” ou “não-praticante”, o evangélico sem igreja talvez frequente várias igrejas sem se definir por uma; ou pode ser que assista a uma igreja durante alguns meses, antes de passar facilmente a outra. Com isso, não chega a se sentir assembleiano ou batista ou presbiteriano ou quadrangular. Existe, então, um setor crescente de pessoas que se identificam como evangélicas, mas não como pertencentes a uma determinada denominação.
Há
também outra tendência que logo vai aparecer. Ainda não temos os resultados
religiosos do Censo de 2010, mas as pesquisas recentes indicam que a
porcentagem de evangélicos continua crescendo -- não no ritmo dos anos 90 (que
foi inteiramente excepcional), mas voltando ao ritmo de crescimento que
caracterizou os anos 50, 60, 70 e 80. Contudo, esse crescimento um dia vai
parar. Tal afirmação não é uma questão de “falta de fé”! Mesmo
estatisticamente, nenhum processo de crescimento pode durar para sempre.
Percebemos, pelas tendências atuais, que o fim do crescimento evangélico no
Brasil pode não estar distante. De cada duas pessoas que deixam de se
considerar católicas, apenas uma passa a se considerar evangélica. Além disso,
evidentemente, a Igreja Católica não está a ponto de desaparecer. Fenômenos
como a Canção Nova e outros testemunham disso; ou seja, há formas de
catolicismo que arrebanham muita gente. É verdade que o catolicismo continua
diminuindo numericamente, mas principalmente entre adeptos nominais ou de
vínculo fraco. Existe um núcleo sólido que não está desaparecendo e que
constitui, provavelmente, em torno de 25 a 30% da população. Pelas tendências
atuais, será difícil que os evangélicos, que hoje são em torno de 20%, passem
de 35% da população.
Tudo isso
significa que logo vivenciaremos uma nova fase da religião evangélica no
Brasil. Estamos desde os anos 50 na fase do crescimento rápido. (Antes dos anos
50 as igrejas não cresciam tanto.) Crescimento rápido significa que a igreja
média tem poucas pessoas que nasceram evangélicas, mas muitas que se
converteram, inclusive que acabaram de se converter. Essa situação é
privilegiada sob muitos aspectos, mas também tem certas implicações. Quando
terminar a fase do crescimento rápido -- provavelmente nas próximas duas ou
três décadas --, haverá outro perfil em uma igreja média: mais pessoas que
“nasceram na igreja” e menos que se converteram ou que acabaram de se
converter. Com isso, muitas coisas mudarão. O perfil de liderança
eclesiástica exigida mudará. O crescimento rápido privilegia certo tipo de
líder: o que tem um ministério capaz de atrair novos membros. Isso, claro, é
muito importante, e sempre haverá espaço para esse tipo de líder. Porém, com a
estabilização da igreja, haverá mais espaço para outras modalidades de liderança.
E, como sabemos pelo Novo Testamento, os ministérios na igreja são múltiplos e
variados. Não devemos ter uma linha de montagem de líderes cristãos com todos
exatamente iguais. Temos de abraçar a variedade de ministérios e de tipos de
líder evangélico.
Por que
no futuro uma variedade de tipos de líder será ainda mais importante? Quando as
igrejas crescem muito, a exigência é fazer bem o bê-á-bá, pois há sempre
pessoas novas chegando. Entretanto, quando há uma comunidade estabilizada
numericamente, com mais pessoas com muito tempo de vivência evangélica, outras
exigências ganham força. “Entre a conversão e a morte, o que tenho de fazer?
Como desenvolvo a minha fé? Como devo crescer nas mais variadas áreas? O que
significa ser discípulo de Cristo em todas as dimensões da vida? O que a fé
evangélica tem a dizer sobre as questões que agitam a sociedade?” Haverá,
então, mais exigência por um ensino variado e por pessoas que saibam falar para
a sociedade em nome da fé evangélica. Precisaremos de pessoas preparadas nas
mais diversas áreas de interface com a sociedade; portanto, precisaremos de
ministérios cada vez mais diversificados. Esse tipo de líder não aparece da
noite para o dia, pois a formação leva tempo. O carisma e o autodidatismo não
bastam nesses casos.
Além
disso, será cada vez mais importante a questão da transparência: primeiro,
porque é uma demanda do próprio evangelho e, segundo, porque (queira Deus!) o
Brasil de 2040 terá uma democracia mais limpa e transparente. Os líderes
evangélicos do futuro precisarão ter vida pessoal capaz de ser examinada.
Haverá menos tolerância para o líder inacessível e opaco, que vive atrás das
máscaras. Em vez disso, uma liderança mais exposta e vulnerável será exigida. E
as técnicas não ajudam nisso. O que produz esse tipo de líder é um profundo
processo de formação pessoal, que leva tempo.
Se não
houver pessoas à altura, é possível que, quando terminar o crescimento rápido,
em vez de uma comunidade evangélica estabilizada em torno de 35% durante
gerações e com um efeito benéfico profundo na vida do país, haja um decréscimo
na porcentagem de evangélicos. A curva numérica que agora ascende rapidamente
pode cair de forma igualmente rápida. O evangélico ingênuo, que acha que isso
nunca poderá acontecer, desconhece a história da igreja cristã, pois isso
aconteceu algumas vezes em outros países. Se não tivermos um olhar para o
futuro, para perceber os desafios de amanhã e nos preparar hoje para eles, a
probabilidade é que esse declínio aconteça.
Portanto,
o primeiro desafio de hoje em função do futuro é formar um leque de tipos de
líder, com ministérios variados, mas sempre humildes e com vidas transparentes.
E o segundo desafio é a recuperação da Bíblia. A identidade evangélica não deve
estar ligada meramente a uma tradição que se chama evangélica. Antes, ser
evangélico significa a vontade de ser verdadeiramente bíblico, em todas as
dimensões da vida com Cristo. E a Bíblia é um grande país, um terreno vasto,
que precisamos conhecer por inteiro. Todavia, perdemos muito o sentido de ser
bíblico. É raro hoje ouvir sermões verdadeiramente embasados na Bíblia. São
mais comuns aqueles que nem sequer partem da Bíblia, ou aqueles em que o
pregador lê um texto bíblico para depois falar de outro assunto. É incomum a
interação séria com o texto bíblico, em que se deixa o texto falar para depois
se fazer as aplicações para a vida pessoal, comunitária e social. É raro porque
é difícil. Esse tipo de mensagem requer formação, preparo, pensamento,
meditação. Via de regra, na fase atual do crescimento rápido, é mais fácil não
fazer tudo isso, se preocupar apenas em ter uma igreja cheia.
Em um
futuro próximo, porém, esse enfoque será cada vez mais necessário. Se não
recuperarmos a capacidade de interagir com o texto bíblico, de deixá-lo falar a
nós e, a partir disso, tirar as implicações individuais, eclesiásticas e
nacionais, nos mostraremos irrelevantes. Assim, é possível que a curva decline
logo após a estabilização, pois a capacidade de estudar e ensinar a Bíblia é
algo que não se constrói da noite para o dia. É necessário exigirmos de nossos
líderes que ensinem a Palavra, que interajam profundamente com o texto bíblico,
que não fujam! Contudo, o bom ensino na igreja precisa também ser complementado
pela leitura individual. É fundamental adquirir menos livros água com açúcar ou
triunfalistas e mais leituras que nos embasem biblicamente.
O
processo, portanto, tem de começar com os membros comuns exigindo uma melhor
qualidade de ensino e de literatura. A nova liderança para fazer frente aos
desafios de 2030 e 2040 só vai surgir se houver uma demanda articulada a partir
dos membros das igrejas.
Dentro do
tema da recuperação da Bíblia, insisto na centralidade dos Evangelhos.
Comenta-se que a fé evangélica se tornou prisioneira da cultura religiosa da
barganha. Ora, uma das maneiras de superar a cultura da barganha é incentivar a
dedicação a uma causa (como fazem os movimentos políticos mais ideológicos). O
problema, neste caso, é a persistência ao longo do tempo, a capacidade de
continuar dedicado a ela durante décadas e apesar dos contratempos. Porém,
existe uma outra maneira de combatermos a cultura religiosa da barganha:
encantando-nos com a figura de Cristo, com a humildade amorosa de sua figura
humana retratada nos quatro Evangelhos. O melhor antídoto para a cultura da
barganha é o fascínio por Cristo, que advém do estudo sério dos Evangelhos.
A igreja
evangélica brasileira de 2040 precisará, portanto, de líderes mais diversos nos
seus dons, profundos no seu conhecimento e sabedoria e transparentes nas suas
vidas; e precisará ter redescoberto o verdadeiro sentido de ser evangélico, que
é a vontade de ser profundamente bíblico em toda a nossa existência. Esses dois
requisitos existirão se a igreja de hoje tomar as medidas necessárias.
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• Paul
Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do
programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e
professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie
School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo,
Ontário, Canadá.